terça-feira, 12 de abril de 2011

“Suor”, o romance socialista de Jorge Amado

-- "Suor", de Jorge Amado --
por André Egg
Em 1934 Jorge Amado publicava seu terceiro romance, Suor. O jovem filho de um fazendeiro de cacau arruinado da região de Ilhéus, no litoral sul da Bahia, estava no Rio de Janeiro estudando, mas acabou descambando para a literatura, num processo sociológico que Sérgio Miceli analisou em seu clássico Intelectuais e classe dirigente no Brasil. Segundo Miceli, famílias tradicionais das regiões economicamente decadentes (Minas Gerais e todo o Nordeste) tinham recursos limitados para dar estudo e encaminhamento profissional a todos os filhos. Os mais velhos ficavam no comércio, no direito ou nos altos cargos públicos.
Aos mais novos sobravam profissões de pior status e remuneração, mas que exigiam capital cultural. Essa é a trajetória típica da maioria dos intelectuais modernistas, uma geração que mudou completamente a cultura brasileira e criou o papel do intelectual como ativista político, como agente de uma arena pública até então praticamente inexistente no Brasil. Não por acaso, essa geração que escrevia romances com uma linguagem coloquial nos anos 1930 foi a primeira a ver a literatura se tornar um grande negócio – muitos deles logrando viver, e muito bem, dos direitos autorais das obras que começavam a circular para um público mais amplo.
Essa situação de pessoas de origem social elevada, ou seja, filhos de donos de terras e senhores políticos decadentes, que recebe da educação mais fina em casa, mas não logra conquistar posição política ou econômica equivalente à dos seus pais, também segundo Miceli, teve a tendência ao radicalismo político. Daí que os filhos das oligarquias decadentes eram uma categoria extremamente significativa no movimento comunista brasileiro.
Tudo isso nos leva de novo a Jorge Amado. Um jovem filho de fazendeiro, certamente recebeu uma grande formação intelectual. Até que se vê obrigado a migrar da região cacaueira com o fim dos negócios do pai. Por algum tempo em 1928, vive numa espécie de cortiço no Pelourinho, em Salvador. Alguns anos depois, as observações e notas tomadas no miserável casarão se tornam um romance publicado.
Um romance que se pretendia uma nova experiência literária. Um romance socialista. Muito mais do que uma obra de propaganda política direta. O termo socialista, uso aqui como oposto de individualista, e se refere à técnica do romance em si, e não exatamente a ideias partidárias que o autor defende ou propagandeia. Sim, porque Jorge Amado era comunista, filiado ao PCB, participou da Direção Nacional do partidão na década de 1940, foi deputado constituinte entre 1946-48. E escreveu livros de propaganda política comunista descarada. Caso especialmente da trilogia Subterrâneos da liberdade, da biografia de Luis Carlos Prestes (O cavaleiro da esperança), ou do relato de viagem O mundo da paz – descrevendo o leste europeu do início da década de 1950. Em todos estes livros, Jorge Amado está escrevendo sob a égide do Realismo Socialista: seus livros tinham de ser previamente aprovados pelos intelectuais do partido e seus heróis e vilões obedeciam um tipo previamente definido.
-- Jorge Amado no exílio parisiense, 1948 --
A partir de Gabriela cravo e canela surge um novo Jorge Amado, rompendo com o partido e assumindo sua fase mais criativa. Entretanto, os primeiros romances do escritor são obras muito interessantes, especialmente pelo fato de estar ele por esta época buscando construir uma linguagem literária nova. Num momento em que o partido ainda não tinha nem pretendia ter controle direto sobre os produtos dos escritores comunistas, Jorge Amado estava inventando ou trabalhando na técnica literária capaz de revelar um mundo novo.
Era a técnica do romance onde não há um personagem central ou uma trama linear. De uma miríade de pequenos personagens, cujas peripécias se passam fortuitamente, surge o verdadeiro personagem do romance em questão: uma coletividade. O que este tipo de literatura estava tentando, vinha sendo feito à mesma época pelo cinema soviético em filmes de Eisenstein e Dovjenko – obras sem astros individuais ou personagens centrais, sem uma trama narrativa linear.
É nisso que Suor pretendia ser um romance socialista. No fato de não ser um romance sobre fulano ou sicrano, mas sobre todos os pobres oprimidos do mundo, ou do Brasil, vistos na figura dos moradores do casarão da rua do Pelourinho. É verdade que estão lá o anarquista espanhol, o judeu comunista, o propagandista do partido – e em suas bocas o discurso oficial comunista e um certo triunfalismo anterior à revolta fracassada de 1935 e à ditadura de 37-45. Apesar das agruras e sofrimentos dos pobres, é possível perceber no romance aquela segurança proporcionada pelo conceito teórico da “inevitabilidade da revolução”. Entretanto, o conceito de revolução ainda não estava ligado ao terror stalinista, ou ao controle do partido sobre os intelectuais. Era ainda um momento de muitas possibilidades visionárias, muitos sonhos.
E é por isso que o romance também não termina. Apenas a sugestão de que a massa, a coletividade, se rebela contra a crise, a fome o desespero. Que tem coragem de fazer greve. Que não tem mais nada a perder. É essa ingenuidade do romancista de 22 anos, essa virgindade política dos comunistas brasileiros que dá mais graça e frescor ao romance. E é essa ânsia de fazer aparecer na literatura o Brasil pobre e sofrido, sua fala cotidiana, os palavrões, as gentes desregradas, as religiosidades e sexualidades populares, essa não-vergonha de ser Brasil, que faz justamente com que a literatura modernista consiga de fato se tornar uma literatura que o brasileiro lê. Jorge Amado, assim como outros colegas de sua geração, efetivamente vende livros. Provavelmente ainda não muito em 1934. Mas certamente já o suficiente para se manter em 1946, quando entrega todo o salário de deputado para o partido, e vive (muito bem) apenas de direitos autorais. Nas décadas seguintes, traduzido para muitas línguas, vendendo exemplares às dezenas de milhares, arrisco dizer que o escritor ganhava muito mais que qualquer jogador de futebol.
Pois Suor é o testemunho desta pesquisa, desta busca do Brasil, que os modernistas fizeram como ninguém. É o testemunho do nascimento de uma literatura. Na orelha do livro fazem comparação com O cortiço de Aluízio de Azevedo, e com o escritor russo Máximo Gorki. Eu faria outras comparações. Imagino Suor como um livro aparentado a Caminhos cruzados, que Érico Veríssimo publicou em 1935 com semelhantes intenções estéticas. Diz o escritor gaúcho em suas memórias (Solo de clarineta) que se inspirou em Contraponto, de Aldous Huxley. Mas não teria lido Suor? Quem sabe?
Compararia também à literatura dos comunistas norte-americanos, escritores como John dos Passos ou Michael Gold, cujas obras Jorge Amado incluiu na coleção “Romances do Povo”, que dirigiu para uma editora comunista nos anos 1940.
Por tudo isso, considero de alto valor que a Companhia das Letras esteja publicando uma edição tão caprichada da obra completa de Jorge Amado, assim como faz também com a de Érico. Só lamento que o escritor não permitisse nunca mais uma reedição de seu O mundo da paz. Envergonhado da propaganda política descarada que fez, relegou seu livro ao limbo, apesar dele ter sim muito valor histórico. De qualquer forma, além da qualidade literária em si, do experimentalismo a que o autor ainda se permite, o interesse histórico é o ponto alto de Suor. Ali vemos o nascimento, posteriormente abortado, de uma literatura de esquerda no que ela ainda podia ter de aliança entre vanguarda política e vanguarda estética. Na década seguinte, isso não seria mais permitido a um escritor comunista – posto que vanguarda virou sinônimo de “decadência burguesa”, e o realismo socialista se tornou uma horrível política oficial.
Suor tem esse condão de mostrar um Jorge Amado pré-realismo socialista, e nos deixar com aquela pergunta ingênua: que grande escritor não poderia ter sido? Sua grandeza ficou, depois, um tanto limitada pelas mesquinharias políticas que dominaram parte de sua literatura
::: Suor ::: Jorge Amado ::: Cia. das Letras, 2011, 152 páginas :::

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